Investigação

Sociedade de Risco e Sociedade de Massas: os novos tipos de danos e as novas morfologias da tutela

2024 – 2027 (Fundamentos do Direito Privado)
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(i) Conteúdo e relevância

O presente projeto de investigação visa o aprofundamento do conhecimento dos problemas dogmáticos e práticos, processuais e substantivos, emergentes numa sociedade em que os danos provocados atingem uma infinitude de sujeitos e lesam bens jurídicos fundamentais. Desastres ecológicos como os decorrentes dos rompimentos das barragens de Mariana e Brumadinho, a par de explosão da plataforma de exploração de petróleo da BP, danos provocados aos consumidores por práticas violadoras do direito da concorrência, atividades de grandes empresas, públicas ou privadas, que se desenvolvem de modos contrários às exigências da ordem jurídica são alguns dos exemplos em que os sistemas processuais civis de resposta, conhecidos nos diferentes espaços jurídicos, se revelam inadequados e erodidos. Por isso há que enfrentar este grande desafio: que novas estruturas podem ser pensadas para que se confira eficácia à tutela das situações violadas e a compensar? Que estruturas devem ser criadas para impor a adoção de condutas que alterem o modo de funcionamento de grandes atores sociais?

 

Para uma tentativa de resposta a todos estes desafios, o ordenamento jurídico de referência é o português. Não obstante, pretende-se, evidentemente, tirar proveito das experiências de ordenamentos jurídicos estrangeiros, designadamente dos representados pelos investigadores convidados. Esta comunicação é tanto mais relevante porquanto se pode, sem exagero, afirmar que o mundo está dividido na enunciação de resposta para os problemas identificados em dois blocos: uma Europa que, por tradição, concebe sistemas processuais assentes numa lógica individualista e que começa, até por imperativo do legislador da União Europeia, a dar os primeiros passos em todos estes domínios, e o Brasil e os Estados Unidos que, talvez até pela sua escala continental, há muito construíram uma nova teoria geral do processo, capaz de explicar dogmaticamente os modelos de reação aos ilícitos que ocorrem em sociedades de massas e que, por vezes, surgem como danos incomensuráveis.

 

Algumas notas mais neste contexto; elas permitem compreender a absoluta atualidade do tema e a premência de se encontrarem respostas.

 

O desenvolvimento das sociedades a partir da segunda metade do século XX implicou transformações que se projetam na litigância cível. Por um lado, proliferou a intervenção das massas em negócios jurídicos, e bem assim a crescente juridicidade da vida individual e coletiva. Pense-se, por exemplo, nos direitos dos consumidores, dos investidores, dos estudantes, dos desportistas, etc.

Por outro lado, o modelo organizativo das sociedades consiste numa agremiação de estruturas, com graus de complexidade variáveis, erigidas à volta de um fim ou interesse. Trata-se, afinal, da característica da espécie humana que a distingue radicalmente das demais: a capacidade de construir estruturas imateriais que agreguem diversos elementos da espécie à volta de um interesse comum ou numa comunidade de interesses. Os frutos desta capacidade vêm-se acumulando desde o início dos tempos, sendo cada presente o ápice da sua expressão. Estruturas que em certos casos, atendendo à sua significativa dimensão, circulam no discurso sob a designação de “sistema”: o sistema de saúde, de educação, de justiça, etc. Mas outras estruturas há que, tendo menor dimensão, polarizam e prosseguem outrossim fins que a vários interessam: sirvam de exemplo paradigmático as pessoas coletivas, em especial as sociedades comerciais. Porque os componentes dos sistemas estão interligados e porquanto elementos de idênticas características se repetem nos sistemas, não de raro o problema numa parte da estrutura ocorre igualmente noutras suas latitudes.

 

A tutela coletiva é solicitada pela verificação coeva do mesmo problema jurídico em diferentes esferas jurídicas individuais. Esta circunstância suscita a conveniência, senão a necessidade, de empregar métodos de resolução de litígios que se não cinjam a conflitos bilaterais singulares, mas integrem a pluralidade subjetiva cujos elementos são, ou podem ser, parte em conflitos objetivamente idênticos. As respostas disponíveis no sistema português de processo, designadamente o litisconsórcio e a coligação, afiguram-se insuficientes quando são da ordem das centenas ou dos milhares, ou até indetermináveis, os titulares dos interesses em jogo. Os desafios processuais gerados por esta nova litigância, a que se convencionou chamar “processos de classe”, são múltiplos e transversais. Só para nomear alguns, tomem-se as hesitações quanto à competência, à legitimidade e ao patrocínio judiciário, a litispendência, a organização dos atos na audiência final, a sentença e os seus efeitos, em particular o caso julgado, mas também a admissibilidade de transigir, desistir do pedido ou da instância. E podemos olhar noutras direções, refletindo, por exemplo, na pressão provocada pela tutela de classes ou categorias de interesses sobre os institutos de um sistema substantivo que concebe a indemnização como compensação, os quais se traduzem em dificuldades na identificação e quantificação dos danos e na atribuição das indemnizações aos diversos membros da categoria. A todos estes problemas prestará atenção o presente projeto de investigação.

 

Suscitando problemas distintos, malgrado a afinidade com os referenciados à tutela coletiva, temos os processos estruturantes. Ordenados a provocar uma mudança no modo de funcionamento de uma estrutura, têm a sua origem numa decisão, datada de 1954, do Supremo Tribunal Federal, dos Estados Unidos, que veio resolver o caso Brown versus Board of Education of Topeka. Na sequência da recusa de inscrição de uma criança negra numa escola pública, frequentada exclusivamente por crianças brancas, o Supremo imporia à concreta escola que aceitasse a inscrição daquela criança. Mas o Supremo foi mais longe: tomando conhecimento, de modo processualmente relevante, de que a escola que recusara a inscrição não seguia uma prática isolada, mas antes seguia uma linha de orientação comum a diversas escolas públicas de diferentes Estados, aproveitou a decisão para determinar que o sistema de ensino público alterasse a sua prática, aceitando nas escolas e sem discriminação, crianças brancas e negras. Com esta sua decisão, o Supremo, identificando um problema transversal a todo o sistema de ensino público, emitiu uma decisão-regra com um efeito estrutural.

 

Inaugurava-se a categoria dos processos estruturais, aqueles através dos quais o órgão competente emite uma injunção que determina a alteração do modo de funcionamento de uma concreta estrutura, quer porque a considera ilegal, quer porque considera que ela não segue as melhores práticas. A obtenção de tutela através de processos estruturais vem ganhando terreno. E o conceito de processo estrutural vê-se alargado a campos diversos daquele que era originariamente o seu: atualmente não se duvida que processos que tenham impacto no funcionamento de uma estrutura – reorganização de uma empresa, tutela de minorias nos casos de operações de M&A, processo de falência ou, mais amplamente, de liquidação universal de patrimónios –, negociações que atingem uma pluralidade significativa de créditos e débitos de um concreto sujeito, num contexto negocial e extrajudicial, são casos exemplificativos do que hoje se reconduz já à categoria de processo estrutural.

 

Interessam-nos igualmente os casos de provocação de danos incomensuráveis. Os acidentes de Mariana e Brumadinho, por um lado, e os ataques de 11 de setembro ou a explosão da plataforma da BP, no golfo do México, suscitam reflexões fundamentais sobre a função ressarcitória da responsabilidade civil e sobre o método de cálculo do dano. Deverá perguntar-se, à luz de um e de outro grupo de casos, quais os limites do direito da responsabilidade na sua capacidade efetiva de respondência perante certo tipo de danos, aqueles que qualificámos como danos incomensuráveis. O modo “compensação através de fundos” faz perguntar se ainda nos movemos no direito da responsabilidade, se devemos antes desenvolver uma nova linguagem para estes tipos de tutela.

 

Finalmente, ocupar-nos-emos de saber se, e em que termos, pode a arbitragem servir para obtenção da tutela coletiva (class arbitration). As dúvidas são plúrimas: encetando pela incerteza sobre a necessidade de vontade expressa dos interessados na constituição do tribunal arbitral, terminando, também por esta razão, na (in)eficácia do caso julgado arbitral.

 

Os problemas colocados pelo objeto da investigação que ora se propõe são fundacionais, pois implicam a compreensão e, porventura, revisão de conceitos e métodos que ocupam a essência da tutela de interesses privados. Pelo que é estreita a relação com a linha de investigação em que se insere o presente projeto.

 

Cada investigador, ou grupos de investigadores que se formarão, será(ão) incumbido(s) de um determinante quadrante problemático, a respeito do qual desenvolverá(ão) um trabalho que terá uma dimensão conceptual ou dogmática, mas também prática, ou seja, um estudo sobre a possibilidade, necessidade e conveniência da integração das soluções buriladas no ordenamento jurídico português.   

 

(ii) Ligações com outros projetos na mesma linha de investigação

O presente projeto apresenta uma estreita ligação temática com um outro, também proposto para o quinquénio 2024/2029, intitulado “Responsabilidade Civil em Relações Massificadas”. Esta ligação não implica sobreposição nem redundância. Parte dos problemas tratados pelo presente projeto, quais sejam a provocação de danos incomensuráveis e a respetiva compensação por meio de fundos, está no cerne do projeto “Responsabilidade Civil em Relações Massificadas”. Todavia, não só, como se assinalou, a afinidade é meramente parcial, como tem natureza complementar: ao passo que neste projeto se procura analisar o problema de uma perspetiva tendencialmente processual, o projeto supramencionado adota uma abordagem essencialmente substantiva.  

 

A demonstrada afinidade e complementaridade justifica a cooperação entre os investigadores de ambos os projetos, a qual se deverá refletir na realização conjunta de atividades, mas também na sincronização da prossecução da investigação.

Investigador responsável

Paula Costa e Silva

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João Marques Martins

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Investigadores

Albert Verheij

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António do Passo Cabral

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Astrid Stadler

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Fernando Gascón Inchausti

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Filipa Lemos Caldas

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Filipa Lira de Almeida

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Flávio Yarshell

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Fredie Didier Jr

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Inês Sítima Craveiro

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Joana Costa Lopes

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Maria de Lurdes Pereira

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Nuno Trigo dos Reis

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Consultores

Kenneth Feinberg

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  • Conselho Superior de Magistratura (CSM)

Os trabalhos iniciarão na primeira reunião de investigadores, na presença do consultor Kenneth Feinberg, com o fito de enunciar as questões-problemas sobre as quais incidirá a investigação e bem assim com a distribuição das mesmas aos investigadores.

 

Pretende-se que os resultados da investigação sejam imediatamente úteis à realização concreta da justiça. Dado este desiderato, seguir-se-á uma reunião dos investigadores com os magistrados indicados pelo Centro de Estudos Judiciários e pelo Conselho Superior de Magistratura, com o objetivo de colher destes profissionais uma impressão sobre as principais dificuldades que as ações de classe e os processos estruturantes suscitam ou podem suscitar na prática. Este passo é determinante para capturar as dificuldades, reais ou construídas, que as estruturas de decisão afirmam encontrar, assim se confirmando a pertinência das questões identificadas para superação através do trabalho a desenvolver, atingindo-se o objetivo final da investigação.

 

Depois destes dois momentos delimitadores iniciais, o projeto segue o seu curso, convocando o protagonismo dos investigadores. A investigação é feita em rede, implicando reuniões periódicas para partilha e apreciação crítica dos resultados intermédios individuais e coletivos. As reuniões realizar-se-ão presencialmente ou por meios telemáticos, ou em formato híbrido. Nestas ocasiões, seguindo um plano previamente delineado e em função dos temas distribuídos, os investigadores serão convidados a apresentar os resultados da investigação até ao momento, a que se seguirá o debate e a avaliação do progresso.

 

Durante este período, será fundamental manter contacto frequente com a evolução e resultados intermédios do projeto “Responsabilidade Civil em Relações Massificadas”. Para este efeito, haverá dois investigadores comuns a ambos os projetos, os quais deverão, além dos trabalhos regulares de que fiquem incumbidos, colocar os demais investigadores a par do andamento do projeto em que estes não tomam parte, e bem assim obter uma articulação produtiva entre todos os intervenientes. Adicionalmente, será incentivada a participação dos investigadores, na qualidade de observadores, em reuniões ou eventos do projeto parceiro.

 

Imediatamente após a última reunião de investigadores, será aprazada reunião com as instituições parceiras, com o propósito de apresentar o produto da investigação. Com esta iniciativa, será possível colher as críticas ao trabalho desenvolvido, aferindo se, na perspetiva dos destinatários últimos da investigação, os resultados alcançados são proveitosos. Concomitantemente, servirá este encontro para colher observações que contribuam para o aperfeiçoamento dos resultados.

 

No termo dos trabalhos, é organizada uma conferência final e conjunta, com os investigadores do presente projeto e do projeto “Responsabilidade Civil em Relações Massificadas”, para apresentação das conclusões que resultaram da investigação. Estes resultados deverão ser apresentados em formato de artigo, redigido em inglês.

 

Dos artigos produzidos e apresentados, serão selecionados dois para proposta de publicação em revista indexada com relevo internacional nos temas sob investigação.

 

Todos os artigos apresentados na conferência final, com exceção dos mencionados no parágrafo precedente, são reunidos numa obra coletiva e proposta a sua publicação numa Edited Series de editora internacional de referência na área.

 

O percurso investigatório será registado num relatório, redigido em português, que constituirá uma síntese das reuniões entre investigadores e bem assim dos principais contributos dos consultores e das instituições parceiras, o qual termina com as principais conclusões da investigação e bem assim com propostas dirigidas ao legislador.


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