A emergência da tecnologia blockchain (e de outras tecnologias de registo descentralizado) e das suas várias aplicações tem-se feito sentir em variadíssimas áreas do direito civil, comercial e financeiro. Um dos temas mais espinhosos tem sido a resposta a dar ao fenómeno das organizações autónomas descentralizadas (em inglês, decentralised autonomous organisations ou DAOs). As DAOs (termo não pacífico) constituem formas de organização humana com base na tecnologia blockchain, nas quais vários associados juntam fundos (normalmente sob a forma de criptoativos) para prosseguir uma determinada atividade (não necessariamente, mas geralmente lucrativa) e cujo governo é em larga medida automatizado e descentralizado, o que significa que o tradicional papel do órgão de administração é substituído por um misto de gestão por todos os associados e gestão automatizada por um smart contract.
Estas novas formas de organização, na sua diversidade, apresentam desafios muito próprios, mas acabam por não funcionar inteiramente à margem da lei. A doutrina, nacional e estrangeira, que já se pronunciou sobre o tema, acabou por reconduzir esta forma de organização a fenómenos de natureza societária mais “primitivos”, tais como as sociedades civis (ou em nome coletivo, dependendo do ordenamento jurídico) nos sistemas romano-germânicos ou às partnerships nos sistemas de Common Law. Ora, tal qualificação resulta geralmente na ausência de personalidade jurídica destas organizações e na responsabilidade ilimitada dos seus associados, uma situação indesejável tanto para estes como para os terceiros que com esta forma de organização se relacionam.
Face ao crescimento recente do número de DAOs, justificar-se-á que o legislador, mais tarde ou mais cedo, intervenha. Tal intervenção não se afigurará fácil, pois as DAOs apresentam desafios únicos à ciência jurídica jussocietária, obrigando à reavaliação de muitos pressupostos e de modelos em vigor há décadas. Será sem dúvida um dos temas mais relevantes de direito das sociedades comerciais nos próximos anos, bem como um dos temas jurídicos mais interessantes no domínio da Fintech.
O projeto estará dividido em várias fases: (i) na fase inicial de recolha de informação e de perspetivas, procurar-se-á recolher impressões da indústria (DAOs existentes ou associações) sobre o estado da arte no que diz respeito à forma como as DAOs se organizam e respondem aos vários desafios jurídicos da respetiva existência, bem como receber o contributo de académicos e práticos europeus sobre como as DAOs podem ser qualificadas no seu direito; (ii) organizar, a partir das referidas interações, uma coletânea de estudos que permita determinar o status quo das DAOs na Europa, tanto de uma perspetiva transversal como de uma perspetiva nacional; (iii) na sequência do lançamento da referida coletânea, organizar um evento com representantes ou especialistas de jurisdições onde já exista algum reconhecimento de DAOs ou estruturas análogas (por exemplo, Vermont, Wyoming e Malta) para perceber o contexto e resultados desse reconhecimento e regulação; e (iv) através de uma conferência e da publicação de um relatório final, recomendar algum tipo de ação à Comissão Europeia no que diz respeito à regulação das DAOs no espaço da União Europeia.
Todas estas fases terão o apoio de um website criado especialmente para o efeito, onde se explicará o conceito geral de DAO e organizações semelhantes e de onde constarão os outputs do projeto.
O objetivo deste projeto é, nas fases iniciais já mencionadas supra, desenhar um quadro-geral do estatuto jurídico destas formas de organização no direito vigente em vários ordenamentos jurídicos europeus, permitindo criar massa crítica especializada sobre o tema; e, numa fase posterior, conseguir, com base na informação recolhida na primeira fase, dar um contributo importante para as possíveis respostas legislativas ao fenómeno.
O tema tem relevância científica na medida em que obriga a repensar muitos princípios basilares do direito das sociedades comerciais (p. ex., deve a responsabilidade limitada depender sempre da existência de personalidade jurídica? deve a responsabilidade limitada estar sempre associada a alguma forma de delegação de poderes de sócios a administradores?). Encontra-se também relacionado com o impacto que os smart contracts e a sua característica capital de autoexecução terão no direito civil e nos seus princípios fundamentais.
O tema tem relevância pública e prática na medida em que o projeto se propõe a antecipar respostas legislativas e regulatórias que deverão ou poderão ser dadas mais tarde ou mais cedo. O projeto procura também munir o legislador – nacional e/ou europeu – de ferramentas para uma abordagem proporcional e adequada à emergência das DAOs.